segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Potogee: ser português na Trinidad - Miguel Vale de Almeida

Uma breve navegação através das teias virtuais de significado da rede mundial pode informar melhor do que eu um pouco sobre a vida, a formação e as áreas de pesquisa do português Miguel de Matos Castanheira do Vale de Almeida. Posso adiantar que, na empreitada, vocês se depararão com uma sólida formação antropológica, aliada a um senso estético refinado e passagens pela vida política. Quem ainda não conhece sua página pessoal, não deixe de fazer uma visita (http://site.miguelvaledealmeida.net). É uma experiência bastante agradável.
No que concerne aos objetivos aqui encerrados, do vasto material atribuído ao autor, tive contato com um capítulo intitulado “Potogee: ser português na Trinidad”, presente no livro “Um mar da cor da terra” (Celta, Oeiras, 2000). Vamos ao ponto.
Para o autor, interessado na construção das ideias de raça e etnicidade em contextos pós-coloniais multiétnicos, “a Trinidad surgia como um terreno não turístico e complexo do ponto de vista da variedade de grupos étnicos e raciais”(p. 1). Primeiro, veio a conquista espanhola (Colombo, 1498). Antes de sua independência em 1962 ainda passaram por lá africanos, ingleses e holandeses. Acrescente-se uma grande leva de asiáticos no séc. XIX (indianos e chineses) e portugueses dos Açores envolvidos em querelas religiosas. É a partir de uma análise dessa colcha de retalhos caribenha que Miguel Vale de Almeida irá tecer considerações teóricas importantes acerca de etnicidade e raça, poder, diferenciação e identidade pessoal.
Quando chegou à ilha de Trindade, em 1994, o autor estabeleceu contato com a pesquisadora de ascendência portuguesa Jo-Anne Ferreira. O trabalho da mesma referia-se a uma análise da minoria étnica portuguesa na ilha de Trindade. “Ferreira defende uma visão histórica de grupo étnico contra uma visão de auto-identificação, visão esta que informa toda a sua pesquisa.” (p. 5)Em Trinidad, os portugueses não são considerados nem brancos nem negros, são classificados de acordo com um vasto corpus de categorias possíveis referentes à raça e ocupam funções sociais associadas a uma classe intermediária. Foi através do aprofundamento da relação social com Jo-Anne, conhecendo sua família e amigos, todos atores daquele espaço característico a que se propunha compreender, que o autor pôde enxergar “as nuances dos processos de identificação e diferenciação étnica e racial” (p. 8). O resultado de séculos de condição colonial – e algumas décadas pós-coloniais – marcados pela assimilação de diversos grupos etnicamente auto-indentificados como distintos é uma sociedade hegemonicamente construída a partir de categorizações arbitrárias de raça e etnia refletidas nas funções sociais desempenhadas pelos atores. Embora as pessoas (como os familiares de Jo-Anne) possuam plenas condições culturais de interpretar histórica e sociologicamente “uma sociedade que nasceu da escravatura e do sistema de classes com assento na raça” (p. 8), estão sujeitas ao fato de que “a origem étnica e racial é da ordem da hegemonia na Trinidad: é o grande modelo de referência para pensar e mapear as identidades sociais e é no seu seio e através da disputa semântica em torno dos seus referentes que se dá a luta por emancipações várias e mudanças de significados” (p. 9). Em Trinidad, a “tez da pele, a raça, a origem étnica, a religião, são o centro das conversas, das disputas, das alianças, até da vida política nacional e das produções culturais expressivas, da música ao grande ritual do Carnaval” (p. 9). Então observamos que esse processo de objetivação da origem étnica (que determina funções sociais e categorias generalizantes, quase sempre pejorativas, em relação a portugueses, negros, indianos) e o fato de uma mão-de-obra pós-escravista, juntos, ajudam a compreender a constituição da formação da identidade étnica na ilha de Trindade. O autor ainda observa que, ao lado de uma ideia predominante sobre o sincretismo da sociedade de Trinidad, encontra-se o paradoxo da fidelidade étnica. Esta concepção encontra paralelo em Wilmsem, o qual, segundo o autor, “desloca o centro do argumento para o fato de que a etnicidade surge no exercício do poder. Assim, têm sempre de coexistir várias etnicidades para que haja etnicidade, e os grupos dominantes não são nunca etnicidades, pois detêm eles o controle definicional hierarquizante.” (p. 16) Obervamos que o acesso a recursos e meios de produção é ulterior à “consciência étnica” e que o conceito de etnicidade, na prática, pode ser utilizado por grupos de forma política e marginalizante. Uma teoria sobre a etnicidade que leve em conta tais variantes está mais próxima, segundo o autor, de dar conta da análise da “mudança social”. Etnicidade estando ligada a “condições objetivas de desigualdade na arena do poder social”, enquanto a identidade “refere-se à classificação subjetiva num palco de prática social” (p. 16) Então, a etnicidade é uma circunstância e a identidade um “estado existencial”? Segundo Miguel Vale de Almeida, mais que representação de uma circunstância, a etnicidade deve levar ao questionamento dos critérios utilizados pelos grupos que tomam definições, enquanto a identidade, antes de um aspecto da existência, apresenta caráter ativo e performativo.
Antes de finalizar o capítulo, o autor faz certas considerações, alertando para os usos de palavras como multiculturalismo, pós-modernidade e globalização, fluxos, fronteiras, e, ainda, comentando a perspectiva radical nos estudos que relacionam cultura e poder. Para o autor, na análise de uma construção social multiétnica pós-moderna faz-se necessário levar em consideração as relações de poder, mas elas precisam ser analisadas à luz dos empreendimentos políticos coletivos e, ainda, levar em consideração a subjetividade que consta nos estilos e projetos de vida individuais.

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